segunda-feira, 19 de março de 2018

Selvagem, que nem um coração morto



Eu tinha intenção, desde a última postagem, de vir aqui e escrever sobre algumas coisas, tipo, o desfile lindo da Gucci, aquele das cabeças - arrancadas, duplicadas, medonhas, fantásticas, arrancadas por um troll costureiro - sobre a coisa da síndrome de Thénardier, que é aquela pessoa de origem humilde, pobre, lascada mas que não vale nada, que é bem mais comum do que se imagina, Victor Hugo sabia das coisas. Só que cada vez mais, tenho menos tempo de escrever ou falta é vontade mesmo de.

Escrevo muito, mas em cadernos de anotações, em guardanapos. Corrijo um monte de textos semanalmente, redações de alunos, amostras de livros e reescrevo todos mentalmente, uma centena de textos reescritos e me vejo mingando cada dia um pouco. Cada vez fico mais distante de mim mesma ou, ao menos do que eu era uns quinze anos atrás, cheia de garra, de vontade e de sonhos. Meus sonhos agora se resumem a conseguir dormir uma noite toda, que não falte água no Benfica, que meu rim não volte a doer, que não fique tão difícil pagar as contas, que meus filhos cheguem todos vivos em casa.

Aí mataram a Marielle. Marielle do comitê do Freixo. A Marina vivia me falando dela, do sorriso dela, do abraço dela, das lutas, que nos representavam. Aí mataram a Marielle. Não foi um feminicídio e todos estes que são vários, todos os dias, também doem, até os que a gente não sabe. Foi crime político. Mataram Marielle pelo o que ela representava, porque era uma nova voz, uma voz desprotegida e valente, uma voz falando contra, se posicionando contra uma intervenção escabrosa quando falta pão e sobra choro, tudo o que ela representava. Esta intervenção é o abandono de tudo que está sofrendo o Rio. Aquela criança baleada no Complexo do Alemão é o Rio. Marielle e Anderson baleados no Estácio são o Rio. Aí mataram a Marielle e eu me sinto morta, e coração morto é uma coisa selvagem.

As redes sociais machucam. Você entra, tem um conhecido compartilhando ou escrevendo algo sobre. E é importante e muito simbólico se importar. Teve o ato ecumênico na Praça da Gentilândia, que eu não pude ir, porque estava voltando da labuta. Quarta que foi o dia que mataram a Marielle, corrigi trocentas coisas entre avaliações e atividades de alunos, de gente que nunca vi. Textos copiados da internet, textos mal escritos, alguns textos cheios de esforço, mas todos me matam um pouco, me tiram o colorido desejo de escrever porque eu estou a fim. Dormi exausta, cedo, tomando dois analgésicos desses de 5 conto, porque ir a um médico que me receite um apropriado pro sono é luxo que eu não tenho. Meu médico é do posto, é da UPA. Não vi que mataram a Marielle no dia que a mataram. Só vi no outro dia, após uma longa jornada de trabalho, nos confins periféricos de Fortaleza, voltando de transporte alternativo, observando a feiura e abandono da José Bastos, pessoas dormindo num prédio em ruínas, animais esquálidos suplicando por amor, crianças vendendo amendoins. Tanta coisa que me dói e me mata de pouquinho e pouquinho. E aí, chego em casa, depois disso tudo, que é minha realidade todo o dia, e mataram a Marielle, que representava o sorriso que um dia eu tive. Entendem o selvagem?

Todos os dias em que encaro a vida de frente, com todo o seu pelotão de fuzilamento - as grosserias, os deboches, a indiferença, as maldadezinhas, as maldadezonas - poderia ser um dia em que eu sobrevivi, mas na verdade, eu morri. Morro e renasço todos os dias. Depois que mataram a Marielle, é que eu não sei se retorno do limbo.

Uma criatura que conheci no Rio, cheia da relevância internética, publicou que precisamos de empatia, de nos importarmos com o outro. A mesma criatura a quem pedi emprego quando estava desesperada, com a minha vida toda ruindo e que me deu as costas, quando ao menos poderia ter dito que tudo ficaria bem. São tantas as maldadezinhas e as maldadezonas. Uma outra criatura, que cuida/cuidava duma publicação aqui do Ceará, muito sentida com tudo o que vem acontecendo no país, um pouco antes, começou uma campanha pra ajudar as pessoas que de miúdo começam um negócio, a quem enviei e-mail pedindo pra revisar ou auxiliar revisão de sua publicação, e nada. Ah, e teve outra, quem eu considerava amiga, pedi ajuda diretamente e que me deu as costas. Isso tudo pra contar que uma vez, enviei um e-mail pra campanha da Marielle, empolgada que estava com a lindeza que foi a campanha do Freixo e a dela própria. E me responderam, e foi tão bonito, eu chorei de alegria com aquelas palavras cheias de sorrisos, quente que nem um abraço bom, das lutas que me representavam, da coragem de viver. Não sei se foi ela. Marina diz que foi. E agora ela se foi.

E o que fica pra mim, sempre é Clarice, que morreu da estrela e do sopro, como quem morre de parto: 

(...) E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente seguramente inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro! Não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.

Foto: Do tempo que eu sorria, Trecho: Perto do coração selvagem.

Um comentário :

Sejam educados, seus lindos!

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