terça-feira, 2 de setembro de 2014

A Depressão de Von Trier - Antichrist



Antes das digressões sobre o primeiro dos filmes da tal chamada "trilogia da depressão" de Von Trier, acho necessário deixar por aqui a minha opinião sobre o criador Von Trier, diretor, roteirista, um dinamarquês cheio de talentos, especialmente para ser odiado. Se há uma verdade sobre Lars von Trier é que ele gosta de ser odiado. Uma primeira olhada em qualquer de suas obras e a impressão que a gente tem é de um sujeito meio perturbado, que traduz as suas perturbações em suas criações - até aí tudo bem - mas que carrega na coisa da misoginia. Ou quer que fique essa impressão. Eu mesma tive (tenho, sei lá) essa impressão, a de que existe algum problema entre o diretor e as mulheres, que sempre são os personagens centrais de suas histórias, que são violentas, em que o sexo é animalizado e que o amor é uma farsa. Até o amor de mãe (e pai). Todo o elenco de personagens mulheres de Von Trier, podemos classificar como um bando de infelizes: Bess, Selma, Grace, Ela, Justine, Claire, Joe. Com  o único adendo de que, com exceção de Selma, nenhuma é coitadinha.

Mas sabe, hoje em dia, passados 15 anos que descobri os filmes de Von Trier, não acredito nessa coisa da misoginia, aqui e ali eu argumento isso por pura sacanagem. Contudo, eu acredito na misantropia, que esse viking pançudo sente uma profunda aversão pela a humanidade, incluindo ele mesmo, e desata a criar filmes para mostrar como o ser humano é uma porcaria. E nós, que também somos seres humanos (eu acho), ficamos perante nossas baixezas, todas muito bem representadas (exageradas, porque Von Trier é a estética do exagero) em personagens femininas, todas vis. Como eu sou uma apaixonada por Machado de Assis, que também metia o sarrafo na mulher enquanto constructo, nem me incomodo tanto. 

Mas vamos ao Antichrist (ou Anticristo, como queiram), para o inicio de tudo, literalmente, para a cena inicial de sexo explícito, em preto e branco ao som de Handel, que todos julgam uma das cenas mais lindas já produzidas pelo cinema. Bem, a cena é plástica de verdade, mas linda? Linda é a cena do arco-íris em Dreams do Kurosawa (ou a cena do fim da porra toda do próprio Von Trier em Melancholia, tema d'outro post), mas tudo bem. 

Às vezes eu tento - só tento - imaginar o tanto que nosso querido diretor se divertiu ao ouvir as pessoas se referindo à cena inicial de Antichrist como a coisa mais linda do mundo, porque não há absolutamente nada de lindo, há plasticidade e técnica. E foi tudo de propósito. Um casal faz sexo loucamente sem se preocupar com o filho pequenino num apartamento sem grades e telas de segurança, com todas as portas abertas e janelas com todo o suporte para o pulo no abismo, num inverno excruciante, em preto e branco, para a morte dum bebê ao som de Handel. É tétrico, e o povo acha lindo. É o típico caso do se ater mais à forma do que ao conteúdo. Daí que, quando a persona entende o que foi feito ali, começa a se sentir a pior coisa da face da terra. Né não, meu filho, o Von Trier que é um desgraçado, sinta-se absolvido.

E o nosso querido diretor faz isso o tempo todo, está sempre nos fazendo cair no erro da forma, negligenciando a pança medonha e maligna do Fausto vrontrieriano.

Antichrist é um filme de terror assim, "artístico", mais ou menos como Cidade dos Sonhos do Lynch. É aterrorizante no sentido mais amplo, não é filme para dar sustinhos, é coisa para bagunçar a sua psiquê e bolinar no seu estômago. Óbvio que nem todo mundo vai gostar, porque nem todo mundo gosta da estética do filme alternativo, do filme de arte, daí acaba achando chato, porque no fundo não entendeu. Ou só acha repugnante mesmo. Que nem a galera que odeia Saramago por conta do Evangelho segundo Jesus Cristo. É desmérito? Bem, a gente pode entender orientações diferentes, desde que entendam as nossas, coisa que não acontece via de regra, mas prossigamos. 

Como Cidade dos Sonhos, Antichrist fala da mulher ensandecida, mas não é só isso, tem a coisa da desconstrução da natureza, dos símbolos cristãos e da própria família. E vai além nos personagens sem nome, apenas Ele e Ela, que podem muito bem representar qualquer ele e ela. Ela, a mãe cheia de culpa, a bruxa que anseia pela fogueira. Ele, o pai sem culpa alguma, "um santo redentor" que acabou de perder o filho, mas não está nem aí, quer curar a sua bruxa, digo, mulher. Às vezes acho que fui das poucas pessoas que não absolveram o pai, "santo redentor das ciências", na verdade me incomodava muito sua falta de culpa. É porque sou feminista xiita, né? Pois é.

Ela, a nossa bruxa anticristo, estava em plena produção duma tese de doutorado sobre a inquisição das bruxas, daí surta e começa a "comungar" do ponto de vista dos inquisidores, passando a acreditar que as mulheres estão todas mancomunadas com o capeta, metamorfoseado em natureza, para fazer o mal. Ele, o marido (que nem o "querido" Seligman em Ninfomaníaca) tenta iluminá-la, mostrando que Ela está equivocada, que não é bem assim. Não obstante, no fim das contas, Ele queima a bruxa e sai de pênis esmagado, porém vitorioso, sabe-se lá para onde. Para o raio que o parta, provavelmente.

Engraçado reparar que os rapazes ouvintes, tanto em Antichrist como em Nymphomaniac, representam muito bem a ruptura entre discurso e prática ou, forma e conteúdo, que a gente vivencia todos os dias, a velha e nefasta hipocrisia, levada às últimas instâncias demoníacas (ou faustianas) nas obras de Lars von Trier.

Inté.

2 comentários :

Sejam educados, seus lindos!

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