sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Mês do Halloween - Anticristo



Já escrevi sobre esse filme aqui, um dos filmes mais polêmicos do Von Trier, até o advento do Ninfomaníaca, que também já falei sobre.

E sim, Anticristo é um filme de terror e, um filme de terror perturbador. Acusado de misoginia por conta da maneira como a mulher ensandesida é tratada, é preciso atravessar uma espessa camada de fumaça que o separa do espectador.

Anticristo em toda sua deformidade acidental, talvez seja o filme mais íntegro de Lars von Trier desde Dançando no Escuro, o que é, em si, mais uma questão de justeza do que de defesa. Em Ondas do Destino, há uma cena em que Bess (Emily Watson) interrompe um sermão religioso onde se pregava o amor à palavra de Deus: "Não se pode amar uma palavra. Só se pode amar pessoas", ela dizia. Desde Dogville, Lars von Trier deixou de fazer filmes sobre pessoas, e passou a fazer filmes sobre palavras. A metalinguagem e a exposição auto-reflexiva atingiu tais níveis de epidermia que, por vezes, neutralizavam qualquer engajamento possível com o objeto artístico.

O filme marca o retorno da crença de Lars von Trier nas imagens. Os planos em que o pênis de William Dafoe ejacula sangue, ou em que Charlotte Gainsbourg corta o próprio clitoris, podem ser tudo, menos gratuitos. Desde a primeiríssima sequência, é notória a vontade de Trier em usar a câmera para produzir significados e construir um universo simbólico para além do oportunismo dos choques. Do preto e branco ao hiper-slow motion obsceno o diretor começa o filme criando um universo de moral fabular onde tudo é arquetípico e caos, como afirma a raposa na floresta.

O mundo cresceu sob a égide do fálico, sob um mundo patriarcal, mundo esse erguido após séculos e séculos de opressão, perseguição e morte do gênero feminino. Como a maioria dos crimes apresentam o seu mentor intelectual, podemos afirmar que, no caso do feminicídio, foi a igreja Católica. Um dos principais mitos que compõem a Bíblia, o de Adão e Eva, pode ser considerado a origem do feminicídio. E o feminicídio na Idade Média é o tema de estudo de Ela, personagem vivida de forma incrível pela atriz Charlotte Gainsbourg. Ela é casada com Ele (Willem Dafoe), e divide com ele a culpa de um acidente que poderia ter sido evitado: a morte de seu filho após cair da janela de casa (enquanto eles transavam loucamente. 

Após o prólogo, é assim que Trier nomeia essa parte do filme, tudo parece cair num profundo pesadelo. Sentindo-se culpada, Ela passa um mês em estado de luto, conforme os médicos classificam. Cansado do tratamento que é aplicado à sua esposa, Ele decide retirá-la do hospital e, como terapeuta que é, ele mesmo cuidar dela. Profundamente depressiva e sofredora, Ela inicia o tratamento que seu marido se propôs levar a cabo. A base desse tratamento é descobrir o que mais Ela teme e fazê-la enfrentar esse medo. O resultado é completamente diferente do esperado e uma série de acontecimentos estranhos acontecem, despertando em Ela um instinto assassino. 

 Esse seria o resumo do filme, caso não fosse uma obra de Lars von Trier. Recheando-o de símbolos e alegorias uns bastante compreensíveis, outros nem tanto, o diretor faz desse simples roteiro uma obra que vai de encontro a toda uma tradição cultural do ocidente. 

Adão e Eva foi o primeiro casal que habitou o planeta, segundo a tradição cristã. Para outros segmentos religiosos, o mito de Adão e Eva é apenas parte da verdadeira história, que teria sido moldada pela igreja Católica. Para a Cabala, segmento religioso-filosófico do judaísmo, Adão teria sido criado homem e mulher ao mesmo tempo e, na sequência, dividido. Assim teria surgido Lilith. Deus deu-a em casamento a Adão, mas ela não aceitou se submeter e fugiu do Paraíso, seguindo os passos do diabo. Esse teria sido o princípio da divergência entre o homem e a mulher, entre o Ele e o Ela. Lilith é vista como um símbolo da não-submissão feminina. Von Trier resgata o mito de Lilith, evidenciado, de início, por meio dos nomes dos personagens. Ao optar por não nomeá-los, chamando-os apenas Ele e Ela, Trier deixa claro que o confronto gira em torno de uma disputa sexual. Em uma sinopse do filme divulgada antes do lançamento, dizia-se que o filme contava a história da criação do mundo pela ótica do Demônio. E é isso que acontece. 

 Após a perda do filho, Ela afirma que no último verão havia estado no Éden para estudar com mais tranquilidade o feminicídio para sua tese, porém algo estranho a fez perder a concentração e não concluir seus estudos. Esse “algo estranho” que Ela afirma ter sentido, foi uma espécie de insight provocado pelos seus estudos, que a fez ver a verdadeira condição da mulher dentro da sociedade, só que essa percepção acontece em seu inconsciente. É por esse motivo que ao voltar ao local, dessa vez para o tratamento, Ela parece ser acometida de dupla personalidade, uma violenta e instintiva (Lilith), e outra insegura, medrosa (ela mesma). Trabalhando com as imagens sugeridas, Lilith desperta em Ela, e retorna ao paraíso a fim de recontar a história humana como a vê: ela quer, dessa vez, submeter o homem ao julgo da mulher. Para colocá-lo ainda mais ciente do que é ser mulher na sociedade patriarcal, Ela prende à perna de seu esposo uma roda de concreto, uma referência ao peso da culpa que todas as mulheres carregam ao longo da história. Porém, a personagem é, a partir do momento que chega ao Éden, um constante embate entre Lilith e Ela, a força de uma, contra a submissão da outra. Após Lilith possuir Ele, o lado inseguro da personagem reaparece e, dando-se conta do que havia feito, pune-se cortando o próprio clitóris. 

 É nesse contexto que surge a imagem do Anticristo, pois, ao ir de encontro ao patriarcalismo, ao feminicídio e aos valores pregados em relação à mulher, Von Trier ataca, principalmente, a igreja Católica, por ser a difusora desses valores e, consequentemente, Jesus Cristo, símbolo da instituição. 

O nome do filme é um tributo a Friedrich Nietzsche, um dos principais pensadores da filosofia mundial e responsável por construir uma linha de raciocínio que ataca toda a moral ocidental erguida pelo Cristianismo. Segundo o diretor afirmou em entrevista, o Anticristo do filósofo é seu livro de cabeceira. 

E as alegrorias que o filme constrói? A queda do bebê representa a queda da inocência? E o filhote de veado natimorto? A raposa que come suas próprias entranhas? O defeito no calcanhar da criança?Semana passada conversando com meus alunos afirmei que as grandes obras não nos dão respostas, mas sim, nos enchem de perguntas. è isso que Anticristo faz.

Boo.

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