quinta-feira, 13 de abril de 2017

Fortaleza e os monstros antigos


Hoje seria aniversário de Fortaleza, 291 anos. Na verdade até é o aniversário de Fortaleza, que foi instituído por uma ex-prefeita aí. Estes 291 anos seriam o tempo que Fortaleza é capital, que por sinal, antes era Aquiraz. E no tempo que a gente estudava história do Ceará na escola, todo mundo sabia que a cidade surgiu a partir de uma vila localizada na Barra do Ceará, que veio a consolidar a posse da Capitania. Desse modo, Fortaleza nasceu em 25 de julho de 1604, ou seja, vai completar 413 anos. Martim Soares Moreno, personagem histórico e literário (aparece na Iracema de José de Alencar) foi o 1º capitão-mor e sempre capitaneou na Barra do Ceará.
E isso é uma confusão danada pela cidade. Há quem ligue, há quem não sabe nem do que se trata, há quem nem dê a mínima e há quem ache tudo isso bizarro, como eu, que não sou lá das filhas mais dedicadas da cidade, bem longe disso, mas que fica chateada com despautérios de coisas do tipo: como, em nome da Jandaia, a câmera municipal, fundada em 1701 e que portanto tem 316 anos, pode ser mais velha que a cidade em si? Fortaleza fica parecendo gente que nega a idade com medo da maturidade. Maturidade, eis uma palavrinha difícil, nessa terra insular e provinciana.

E eu nasci aqui, 40 anos atrás, na Policlínica da Heráclito Graça, essa mesma que vira uma lagoa, toda vez que chove, como está chovendo agora. Nasci em uma cidade que foi fundada oficialmente há 413 anos, mas que nega todo um passado, quase dois séculos de vida negada. Uma baita tradição deixada para trás, tradição em mesquinharias, coronelismos, colunas sociais, fofocas, maledicências, tacanhez e pardais pela fiação elétrica, que estraga todas as nossas fotos de Instagram. Não os pardais, a fiação. Tem bem-te-vis também. 

E Fortaleza é metida, com seus verdes mares bravios, mas que nega as expedições holandesas e francesas, que deixaram aquele povo que, daquele nosso jeito bem debochado, chamamos de sarará. É tanta besteira, que o povo da capital tem mania de mangar (debochar) do sotaque do interior, jeito de matuto, e acha que fala bem correto e sem sotaque. Devia é saber que não existe correto, mas que é feio desprezar qualquer um por um acento local, que só acrescenta boniteza. E sim meu povo, a gente aqui de Fortaleza tem muito sotaque, que tem até nome bonitinho, variante da costa norte, mais bonito do que nossos procedimentos. Porque a gente suja a cidade. A gente estraga a cidade. Ela até resiste, coitada, mas muito mal. O Centro sufocado, os subúrbios esquecidos. 

Fortaleza se chama de Terra da Luz, porque a escravidão não funcionou por aqui, mais por motivos de grana do que de coração. Fortaleza que é tão racista, xenófoba, mas se acha diversa e bacana, todo um leque de bairrismos da baixa auto-estima. E disso eu entendo.

Dos meus 40 anos, vivi 15 em outros lugares, Brasília, Rio, terras cheias de auto-estima, um pouquinho até demais. Fica fácil reconhecer quando um lugar tem problemas desse tipo. Do seu jeito, São Paulo sofre do mesmo mal. Já reparam como tudo lá é melhor e maior do que nos outros lugares, ao menos pra eles? Só que Fortaleza não tem muita coisa pra dizer que é o melhor e maior do mundo. De repente a melhor rapadura com coco do mundo, pra mim é. Mas parece que na virada de ano, tivemos a maior queima de fogos, que ninguém fora daqui liga, porque todos só querem o Rio (que por sinal, está falido).

Engraçado que, quando estava fora, em todos os meus sonhos angustiantes, eu estava morando em Fortaleza, ainda no curso de Letras, reprovada em Sintaxe 2 pra sempre. No Rio, acordava aliviada, era só um sonho ruim. De volta aqui, acordo e fico pouco aliviada, pois moro muito perto do meu antigo campus, e tenho medo que ele me trague pra dentro daquelas mangueiras centenárias do Bosque Moreira Campos. 

Faz 3 anos e 3 meses que voltei pra cá, e voltei a reviver todas as minhas angústias antigas, acrescidas de algumas novas: vida adulta, emprego frustrante, contas pra pagar, andar de coletivo, filho crescido, cachorro latindo, calor o ano todo, calor, calor, muito calor, cidade que esconde e nega sua história, em ruínas, delimitadas pela moda foodtruck. Mas até que me comovo, acho que sempre me comovi. Deve ser a maresia. Voltei sem nenhuma vontade de voltar. Mas aqui estou, distante 2 mil km donde queria estar. 

Mas a verdade é que tenho apego, especialmente com meus mortos e com os cantos da cidade que já se foram, tipo a antiga praia Iracema, sem aterro, com a Ponte ainda interditada, melancolicamente linda nos meus sonhos tristes. 

Fortaleza é onde estou, onde nasci, por mais que não faça muito sentido, é a terra firme que posso calcar os pés. É ela quem recebe toda a minha mágoa, angústia, desprezo, meu lixo, meu gás carbônico, minha revolta e minha crítica. Em fortaleza eu vivo os meus afetos e os meus desgostos. Pouco usufruo de Fortaleza, mas vivo aqui. E a desprezo por sua instabilidade, com sua esclerose, seu Alzheimer e meus fantasmas antigos e monstros recentes. É aqui que tudo é lembrar, tipo a lembrança dum membro perdido.

Inté.

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