domingo, 5 de janeiro de 2020

Coringa



Prometi a postagem sobre Joker antes de 2019 acabar, ma não deu. O texto até que já estava rabiscado, mas não estava pronto. Eu não estava pronta ainda, talvez eu nunca esteja preparada pra falar sobre esse Coringa, que me fez um rasgo no peito, similar ao que senti no Cisne negro, aquele fantasma que te possui daquele ballet kamikaze. 

Esperei pelo pior dentro da sala de cinema. O medo de que ele aparecesse perante a plateia na pré-estreia espalhada pelas salas Imax pelo mundo, como a minha aqui em Fortaleza. Todas uma só. Eu olhava em volta e o via, porque ele era o cinema inteiro, ele era a pulsão do meu medo de infância: de ser abandonada. de nunca conseguir nada, de não ser amada, de ser humilhada, diminuída até desaparecer. Vi-me então frágil e deslumbrada. E vi uma das maiores atuações, alcançar a própria zona abissal. Diante de mim, quadros fotográficos pintando um bailarino, Joaquin Phoenix (Arthur Fleck) e sua orquestra de intenções. Uma obra magistral acena para a arena e a clareira de um sujeito autofóbico, no resíduo psíquico permanente, uma sequela subjetiva que já não depende mais de uma alteração de estado estético ou livramento interno, nem a assimilação normativa e o posterior acolhimento por parte do opressor. A autofobia seria um estado latente de inadequação mesmo ao aparente adequado. É como receber um elogio muito evidente e não se reconhecer nele. Achar que é sobre um outro que não você, mesmo sabendo que é sobre você. É assustador quando a arte ousa expor a sombra do mundo deixando a própria se explicar. E a sombra nos conta que talvez não haja nada ali adiante, é apenas a consciência supondo o visível, e o invisível e uma larga ausência do depois.

 Há o risco moral mas não a tal romantização da barbárie ou a fundação do web-exército Columbine. Não enxergo uma apologia ao terrorismo, mas antes noto na narrativa um embasamento político em que duas ruas ideológicas podem ter inclusive um mesmo nome. Entendo como uma divisão de responsabilidades, inclusive essa que nos aponta enquanto sociedade cruel. O isolado tem sempre hipóteses como ser um náufrago na ilha de si, desviar dos cegos que o rejeitam ou fingir pra si que está sendo visto por todos eles. É perigoso se descobrir invisível, se descobrir invisível é não existir diante do outro. Veja o exemplo das redes sociais, esse grande abrigo de invisíveis, muitos deles cruéis, outros muitos não - ainda mais nesse quarteirão vazio aqui, o dos blogs, cheio de entes virtuosos. Ser invisível é estar sozinho dentro de um duelo de vozes. É quando a gente chega a contestar se até mesmo existimos, que o eu é um aparelho fragmentado feito de pelo menos 2 vozes internas. É preciso então olhar para elas duelando para se acessar a própria cartilha moral e então negociar consigo ou desistir. 

O próximo perigo é binarizar esse repertório dialógico, acreditar que essas supostas 2 vozes não podem ser 3 ou 4 ou infinitas. Uma coisa que aprendi com meu pai é que a ignorância é a mãe de todos os malefícios, coisa de Charles Dickens que no seu Cântico de Natal elencou a ignorância e a carência como os filhos da humanidade. Mas, também aprendi por mim mesma que toda maldade nasce da dor, e esse é Arthur Fleck. No núcleo de tudo, a solidão da aberração, Arthur não sente amparo nem em seu suicide watch sazonal. A ênfase na criança-adulta começa a anunciar a tragédia do futuro. Desorganiza-se primeiro o centro de comando e depois isso se amplia na desorganização dos corpos ao redor, o átimo do caos aos poucos é convidado ao passeio. Um futuro que não poupará ninguém. 

E daí o Coringa nasce no seu modo de colorir lacunas, a densidade em seus dois olhos litorâneos, tão rei quanto coringa, alguém que sempre puxa a gaveta da própria loucura. Em mim uma história que parece começar na melodia mais grave de um cello. Ainda não estou pronta. A arte não conta tudo porque tudo é um oco de nada.

Inté.

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