segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Meu amor sangrento


Escrito em algum momento de 2006, Fortaleza. Lembrei dessa 'croniquinha' após saber que My Bloody Valentine lançará disco novo.



Meados de 2006. De novo aquele sonho ruim, aquele em que reprovei a maldita disciplina de sintaxe do português I (sim, tem sintaxe do português II) e não posso me formar. Me formar, aliás, parece cada vez um sonho distante. Ou um outro pesadelo. Escrevendo isso, me ocorre de soslaio que, olha só, eu deveria me sentir mal, enquanto acadêmica de letras, em usar próclises em vez de ênclises, mas estou pouco me lixando. Na verdade, acho ênclise um negócio tão cafona, mais do que hard rock e sapato branco. Pior do que isso só mesóclise, que me lembra alguém que toma chá (ou café) e que levanta o dedo mendinho. 

E eis que depois deste pesadelo, uma e pouco da manhã, não consigo mais dormir. Aliás, acho que desde 1995 que não consigo dormir direito. Há quem diga que é coisa de mãe, não dormir direito. Eu digo que é coisa de mãe sobrecarregada. Ou ser mãe que é sobrecarga, sei lá. Mas o certo é que no meio de mais uma noite insone, decido finalmente ouvir My Bloody Valentine. Eu já tinha ouvido antes, Sometimes no Lost in Translation da Sofia Coppola, e o filme e a música causaram em mim uma série de efeitos, que desencadearam sentimentos dos mais diversos, que eu poderia resumir como desconcertantes. Aquela cena de Lost in Translation, na ponte em Tokyo, e aquele paredão de guitarras shoegaze de Sometimes... Close my eyes Feel me now, I don't know how you could not love me now... Sempre que me perder de vista, pode me procurar nessa cena, morando dentro dessa música.

Vamos à audição, um download xexelento que fiz na 'procura das almas' (entendedores entenderão). Há de se entender que sou um espírito velho, acostumado a comprar vinis no centro da cidade e que mal se acostumou com CDs. O álbum é Loveless. Olha o nome da cousa: Loveless. Sem amor. Acho que eu deveria assinar doravante M.E. Loveless. Três anos de gravação que deram em quarenta minutos de músicas. Músicas. Foram alguns dos quarenta minutos mais intensos que já vivenciei. Quase a experiência dum parto. Acho até que acabei de parir alguma coisa sombria e linda, que escorreu pra debaixo da minha estante de livros. Corro pra cozinha. Todos dormem. Liam passa por mim (não o Gallagher, ai de mim, meu gato angorá). Abro a geladeira e me jogo no chão. O brilho branco da geladeira azul, sua atmosfera ártica anima as células do meu rosto. Eu acho que estou chorando. Pego uma garrafa de vinho que estava ali pela metade, vinho desses de dez reais, e volto pro quarto. Ainda ali no computador, o player de Loveless pronto pra ser reiniciado. Meu quarto cheira a incenso de canela que briga com o resíduo do meu cigarro de cereja. E agora o vinho baratinho.

Loveless é uma violência, é uma dor, é um parto natural, sem remédios, sem conforto, mas que termina numa explosão de alívio, lágrimas, amor em sangue e outros líquidos vitais, evaporando, evolando. Amor sangrento. Loveless passou a ser fundamental pra mim. A partir de agora é fundamental. Uma carga de ruídos orquestrais, em que aquelas três guitarras, que parecem se movimentar e pensar de forma independente pelo disco, ditam os rumos da minha vida. O contraste entre as vozes brandas e a tapeçaria quase intransponível de sons que ocupam o álbum traz à tona alguma lembrança residual do abismo. Amar e não amar são abismos, um do lado do outro, como canyons. Morada de sei lá o quê, que dói sei lá porquê. Acho que acabei de condenar a minha pobre alma a viver assim, Loveless.

Imagem: Estou com uma ideia pra ilustrar essa crônica/página de diário/algo que o valha, seria uma referência ao Shoegaze (olhando pros sapatos). Gosto de tirar fotos da perspectiva de quem olha pros pès ou pros sapatos. É minha alma de shoegazing. Então, fica essa por enquanto.


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