quarta-feira, 30 de maio de 2018

Meu povo, melhore...



Observando toda a loucura desencadeada por conta da greve dos caminhoneiros e suas consequências, o desabastecimento que realmente está meio trevoso, eu me pego pensando, especialmente depois de conferir algumas postagens beirando a dor existencial via Twitter e Facetruque, de que algo errado não está certo com essa gente. Chego a conclusão de que o brasileiro atual não está iniciado na zoeira cíclica do própria país.

Obviamente que a situação em alguns lugares do Brasil está bem sinistra, falta remédio em vários hospitais, tem animais morrendo de fome e isso não é brincadeira. Mas véi, na boa, tem gente histérica porque tá faltando batata inglesa e alface! Meu povo, melhore. Sem falar na galera elitista e socialmente cega, que está pra cometer suicídio, porque já não encontra alho poró no Zona Sul (ou insira aqui o mercado metido a besta da sua cidade). Esse povo, essa gente, eu tô achando é graça, variando pra vontade sincera de meter um tapa no pé da orelha, quando o problema da criatura humana é a falta do melão japonês e das tâmaras do Egito.

Eu que sou professorinha sem fé, como diz aqui do lado, entendo o porquê do ódio que esse povo todo sente pela história, e continuo achando que burrice deveria doer. O tanto que o brasileiro médio emburreceu nos últimos tempos, que coincidiram com alguns dos melhores anos da história recente do Brasil, anos de fartura, de inflação controlada. Parece que o brasileiro gosta é de se lascar de verde e amarelo e agora, com patinho da FIESP.

Eu fui criança na década de 1980, peguei o final da Ditadura, do governo do meu xará Figueiredo, aquela santa criatura que preferia cavalo ao povo. O país completamente falido, arrasado, entregue pro defunto Neves que por consequência passou pro coronel do Maranhão, vulgo Sarney da ABL. Inflação de 84%. Você tem ideia do que é isso? Você acorda e o leite custa tanto e vai dormir com o mesmo leite custando 3 vezes aquele tanto. Tinha fila pra comprar leite que era limitado a dois litros por família.  E eram alguns dias da semana só. Foi daí que veio o hábito, que ainda persiste nos subúrbios de Fortaleza, das vacarias. Fulano cria umas vaquinhas leiteiras e pá, comercializa o leite, ali, na moita, sem fiscalização. O tal do leite mugido. Acho bucólico, mesmo odiando leite mugido ~ péssimas lembranças de ter que tomar com nata e tudo. Ah, e ainda me pedem intervenção militar e é pra já. Pra quê? Pra falir ainda mais o país? Todos fugidos das aulas de história, gente que acha bonito professor humilhado, vivendo de doação.

Quando meu pai morreu, eu tinha 11 anos e a gente se lascou bonito. Beiramos a fome várias vezes. Sobreviver era a meta e minha mãe, pobre soberba, gastava o que não podia pra me manter numa escola particular no Montese, quando a gente passava o mês comendo arroz com mortadela, comprado fiado na Bodega da Dona Maria. Mas eu tinha que estudar na escola particular. Não me entendam mal, eu reconheço os sacrifícios que ela fez pra conseguir me criar sozinha, mas era burrice manter filho em escola particular quando falta tudo dentro de casa, num país com inflação galopante e dinheiro desvalorizado. E faltava tudo mesmo lá em casa. Eu devo ter passado uns dez anos da minha vida sem comer chocolate e pra mim tudo bem. Mas você imagina uma criança ou adolescente dessa geração passar por isso? Desses que frequentam escola particular? Pois é. Minha última barra de chocolate na infância deve ter sido lá pros 10 anos, minhas tias, irmãs do meu pai, trouxeram pra mim de Pernambuco, mas daí meu pai morreu, a família dele nos enterrou juntos e, como éramos pobres de marré deci, só na vida adulta fui experimentar uma barra de chocolate inteira, só pra mim. Iogurte era uma vez por mês, quando saía a pensão. Eu passava o mês todo esperando. Rúcula eu pensava que era um xingamento. Quando ouvi a finada Ofélia, no seu programa de culinária, ensinando a fazer salada de rúcula com ricota e azeite (azeite?) eu, moça de família, até ruborizei. Como assim, palavrão na Tv Bandeirantes, na frente das câmeras, tá bom? Até hoje acho rúcula um negócio meio obsceno. Ofélia danadinha. 

O certo é que tudo na minha casa, e na casa de milhões de brasileiros pobres, num país em crise econômica e atrasado, era extremamente difícil. Um achocolatado pra colocar no leite, vulgo Nescau, Toddynho? Não, adoce com açúcar mesmo. Se a mãe estiver de bom humor, ela fazia um caramelo, açúcar queimado, e daí a gente tinha o leite colorido (até hoje gosto muito disso). Fruta? Banana maçã do quintal de casa, jambo e carambola das calçadas dos vizinhos, manga e caju dos sítios do bairro e acabou. Morango eu só sabia que existia  da tv, dos filmes e do sabor do Quick Morango, que era um dos meus luxos, também quando saía a pensão. Quando experimentei um morango pela primeira vez, minha cara retorceu toda, que deve ter entrado um grau, de tão azedo, coisa que eu não esperava. Eu esperava Quick, né? Batata frita? Gente, eu comi batata frita pela primeira vez na inauguração da McDonalds em Fortaleza (primeira vez com hamburguer também), meados da década de 1990. Refrigerante (que segundo Paola Carosella não é alimento... diz isso pra uma criança pobre que tem poucos prazeres na vida, fia)? Adivinha? Uma vez por mês também, tanto que eu sou viciada em refrigerante até hoje, especialmente o refrigerante mais gostoso do mundo, o de caju São Gerardo. Mas na minha época de erê era caro. Almoço era com um copão de água do filtro de barro e, aos finais de semana, um suco artificial, vulgo Kisuco, porque Tang também era luxo. Uma vez, fui fazer trabalho na casa de uma colega de escola, e a mãe dela pegou uma lata de doce de leite. UMA LATA DE DOCE DE LEITE. Abriu e serviu duas colheres enormes pra gente e, com suco de laranja que ela espremeu ali, na hora. Eu fiquei... What? Aquilo ali, pra mim, era o supra sumo da riqueza. Até hoje tenho como hábito comer doce de leite acompanhado de suco de laranja, feito na hora, porque hoje eu posso, mas eu sei o tanto que me custou conseguir, mesmo sendo pobre sinistra, proporcionar uma vida com menos carências pros meus rebentos.

Meus filhos não passaram por nada disso que passei e, mesmo assim, ainda se queixam da falta de microondas, do videogame, da boneca que falava, mas cresceram muito bem nutridas, com todas as frutas, verduras (inclusive rúcula), legumes e todos os mimos que eu podia fornecer, como bolo de chocolate com chantilly. E também não lhes faltaram os jambos e as carambolas roubadas das árvores da vizinhança, e as sacolas de mangas e cajus doados pelos donos dos sítios do bairro.

Daí eu vejo essa geração mimada, reclamando da escassez momentânea da abobrinha japonesa. Quanto despreparo, minha gente. Uma ilusão de vida confortável e plena, apenas uma ilusão burguesa. A gente tem que ser mais humilde diante da vida. Pode se cuidar com o bom e do melhor? Faça. Não pode? Sobreviva. Sou de uma geração de gente pobre sinistra que sobreviveu pra comprar mato orgânico e criar os filhos com açúcar demerara. Mas se não tiver, a gente vive sem. 

 Inté.

P.S.: O título desse post, segundo meus filhos, deveria ser "Cala boca, rapariga" hahaha, mas né?

2 comentários :

  1. Que delícia ler seu texto, venho da mesma famigerada década de oitenta e sobrevivi! Sim, essa greve me fez pensar em tanta coisa em como as pessoas se desesperam por tão pouco, eu tento não ser chata e procuro sempre encontrar beleza em cada geração mas as vezes não resisto e brinco com a adolescente aqui de casa a chamando de geração nutella rsrs que inclusive nunca provei...
    Um abraço o/

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  2. Oi! Me sinto representada em seu texto. Vivi a mesma realidade com um pouquinho mais de regalias do que você. Mas sei o que é ser pobre nos anos 80 e até hoje fico admirada de como nossos pais conseguiram nos criar. Essa geração que aí está faz mi mi mi por tudo. Se está caro não compra e pronto! Ninguém morre se não comer batata por 15 dias! Adorei seu texto!!!!

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Sejam educados, seus lindos!

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