terça-feira, 26 de setembro de 2017

O mistério do pó amarelo em Mother! de Aronosky (com update)

Aviso, muito spoiler!



Não tem jeito, se você assistiu o filme Mother! está neste momento se perguntando, afinal, o que diabo é aquele pó amarelo que a personagem da J. Law coloca na água e bebe, toda vez que está abalada?

Obviamente que a resposta mais direta e lógica seria que é uma espécie de medicamento, só que a gente sabe que não é tão simples assim, porque todo o filme trabalha na casa da alegoria metafórica. Sendo assim, aquele pó amarelo não é um tipo de lítio ou algo que o valha, apesar de que tem o efeito similar, mas sim, enquanto metáfora, representa outra coisa e essa outra coisa está enlouquecendo todo mundo que parou sua vidinha durante aquela fatídica uma hora e cinquenta e quatro minutos (eu já assisti quatro vezes). Especialmente porque o Sr. Aronosky afirmou, numa das suas primeiras coletivas sobre o filme, que levaria o segredo do pó amarelo pro túmulo.

Aulas recentes, em que passei a audição do filme pros meus alunos (sim, sou louca), as discussões foram das mais incríveis, tanto pra quem adorou o filme, como pra quem não gostou, por se sentir incomodado ou até mesmo ofendido (vamos combinar que, pra quem é cristão praticamente e, especialmente católico, é meio pesado). Mas então, surgiram duas teorias:

A primeira, do meu aluno Vladison, 3ª ano, que lembrou da relação das antigas religiões de culto à mãe natureza, que talvez o pó amarelo significasse a fé desses adoradores, que ela sorve pra se acalmar, daí quando ela está grávida do motivo do novo tetamento (Cristo), ela não é mais adorada, ou não será mais adorada, e daí joga o pó fora. Agora, o porquê da cor amarela eu ainda não sei nem o Vladison me disse rs.  

A segunda fui eu mesma, pirando no percurso pra casa, via Avenida José Bastos, numa segunda, feriado do comerciante, tudo fechado, sol quase se pondo e eu pensando em radicias da língua inglesa e o pouco de história da língua inglesa que aprendi quando estudava alemão (sim, é isso mesmo, maravilhas da Casa de Cultura Alemã). Yellow (amarelo, em inglês) seu radical saxão -yell significa gritar, clamar. O "dono da casa" (Deus) sempre inclui em seus discursos e escritos, presentes nos textos da Bíblia, o termo cry out, que também significa clamar. Ou seja: Ele fala dos clamores, mas quem os absorve e os sente é Ela. Eu sei lá rs.



E agora uma terceira, li numa matéria do Telegraph, que o pó amarelo seria uma leve referência ao livro Papel de parede amarelo de Charlotte Perkins Gilman, cujo enredo é o seguinte, temos a personagem central, que é nossa narradora em primeira pessoa, como uma espécie de diário. A narradora é uma mulher, cujo marido - um médico - a mantém num quarto que ele alugou durante o verão. Ela é proibida de trabalhar e se vê obrigada a esconder dele o diário que escreve, pra que ela possa se recuperar do que ele supostamente diagnosticou como sendo uma "depressão nervosa temporária - uma leve tendência histérica", um caso comum às mulheres da época, ou seja, que misógino. As janelas do quarto possuem grades, e há um portão no topa das escadas, permitindo que o infeliz do marido controle o acesso ao restante da casa. O conto ilustra o efeito do confinamento na saúde mental da narradora, e sua propensão à psicose. Não tendo nada para estimulá-la, ela se torna obsessiva pela textura e cor do papel de parede do quarto. "É do amarelo mais estranho, esse papel de parede! Me faz lembrar de todas as coisas amarelas que eu já vi - não coisa lindas como botões-de-ouro, mas ouro envelhecido, e péssimas coisas amarelas. Mas tem algo de errado nesse papel de parede - o cheiro!... A única coisa que eu posso pensar sobre isso é que é a cor do papel de parede! Um cheiro amarelo." No fim, ela imagina que há mulheres arrastando-se atrás do papel de parede amarelo, e chega a acreditar que ela é uma delas. Ela se tranca no quarto, que agora é o único lugar onde ela se sente segura, recusando-se a sair dali quando o aluguel do quarto expira.



Contudo, procurando mais coisas sobre, encontrei uma outra entrevista do Aronosfsky em que ele solta a língua ao menos um pouquinho.

 What was with that yellow powder concoction that Jennifer’s character drinks?
Oh no, this is the one I don’t love answering. [Laughs] I think Jen has a better answer for this than I do. Let’s just say it’s harkening back to Victorian novels and this idea of a deeper connection for her and the house. But I don’t love to go deeper into it than that.

O que era aquela mistura em pó amarelo que a personagem de Jennifer bebe?
Oh não, essa é uma que eu não quero responder [Risos] Eu acho que Jen tem uma resposta melhor pra isso do que eu. Vamos dizer que tem relação com as novelas vitorianas e esta ideia de uma profunda conexão entre ela e a casa. Mas eu não gostaria de me aprofundar nisso.

Adendo: J. Law sabe!

Mas então, agora que embolou o meio de campo rs. Se a gente parar pra refletir que, em termos de novelas da época vitoriana, temos Charles Dickens, Eliot e as Irmãs Brontë, com romances como Morro dos ventos uivantes, Jane Eyre, Villette, etc, realmente há essa tal de profunda relação com a casa, até porque estamos falando aqui da Inglaterra, dos longos períodos trancados em casa, no outono e inverno, em que só havia a casa e a leitura, que era feita em geral em voz alta, ou seja, as estórias eram concebidas para serem lidas em voz alta, pra todos se entreterem, daí em parte o epíteto "novela". O que isso tem a ver com pó, gente? e um pó amarelo rs? Será que é uma referência as inspirações dos escritos da era vitoriana em relação a escritoras como Charlotte Perkins Gilman?



Aceito ajudas, sugestões, abraços etc coisa e tal.

Bisous.

P.S.: Ninguém reparou, pelo menos não que eu tenha visto, mas eu acredito que o tal do pó amarelo aparece em outra momento no filme, quando ela está preparando uma espécie de argamassa, ela está misturando lá e o resultado é dum tom amarelado, primeiro meio claro e depois mais intenso. Eu acho que é o mesmo pó. Levando em conta que ela é a casa...

UPDATE!
Na minha última aula, pra um das minhas turmas de primeiro ano, um dos alunos, que já fez estudo bíblico e lê constantemente a bíblia, lembrou d e alguns trechos, fez algumas anotações. Lá no livro do Gênesis 1:2: No princípio criou Deus o céu e a terra. E a terra era sem forma e vazia.

No começo do filme, Ela (a terra/natureza) que é ela e ao mesmo tempo a casa (que é a terra), está arrumando a casa que já fora destruída, meio sem vida ou que não está pronta. Ao longo da narrativa, numa discussão entre o Poeta e Ela, Ele fala que a casa não tem vida, e Ele quer que se encha de vida e ideias, etc. Ela, em várias partes da primeira metade do filme, sente a casa, toca nas paredes, fecha os olhos, e vemos seu interior pulsar, no que parece um útero (vida). Sempre que está alterada, em desequilíbrio, faz uso do pó amarelo misturado em água (fora o que passa na argamassa das paredes). Então, levando em conta que no início a terra era sem forma e vazia, ou seja, sem vida, o líquido amarelo pode sugerir uma espécie de vida, que ela ingere sempre que está em desequilíbrio, que vem justamente, pois ela é sem forma e vazia. Daí, quando ela engravida do Filho do Homem (Jesus), ela joga o pó amarelo fora, pois Ele veio para que tenhamos vida: trecho em João 10:10: " eu vim para que tenham vida, e que tenham vida em abundância."

E aí, minha gente, eu fiz a ligação com as tais novelas vitorianas, já que se lia as tais novelas no inverno, para trazer vida pra dentro de casa, e daí a relação das mulheres e das casas, pois eram elas que liam, ou seja, que trariam (ou criavam) vida.

Já a escolha da cor amarela, acredito que seja pela representatividade do amarelo, cor do ouro, do sol, do açafrão, representa a luz divida, já que atravessa o azul do céu, e ainda, a gema de ovo, que guarda a vida, amarelo simboliza isso, vida. Na Bíblia, o amarelo é a cor da cura, da unção, da fé em Deus, talvez daí Ela precise ingerir o amarelo, pra se curar, ungir e se embeber de fé Nele.

domingo, 24 de setembro de 2017

Mother!



“Eu sempre quis contar uma história não sobre a minha e nem a sua, mas a nossa mãe, a mãe natureza, nossa casa, nosso ambiente e enfatizar o tema a nível humano."

Palavras de Daron Aronofsky numa coletiva recente sobre seu novo filem, "Mother!" ("Mãe!").

Agora é a minha vez ou como é a vida depois da queda no abismo. Seriam títulos possíveis. Ou ainda, como disse Marina Abramovick sobre Mother!, "When you had nothing left to give, you ripped out your own heart" (Quando você não tinha mais nada para dar, você arrancou seu próprio coração). E é assim. Acabei de assistir o novo filme de Aronofsky, pessoinha que já havia desconjuntado minha cabeça com Cisne Negro (mesmo sabendo que suas referências vêm de mangás, no caso do Cisne negro, Perfect Blue). Meio que já sabia o que me esperava. Corte de papel na carne mole do olho. Poucas vezes vi a crítica tão dividida sobre um filme: pretensioso, metido, pior filme do ano, carro alegórico, melhor filme do ano, vulgar sem ser sexy. Arrancou risos da plateia no Festival de Toronto, etc. Lembrei dos risos de toda uma seção quando assisti Cisne Negro. O riso de escárnio do desconhecido, o deboche do que não se quer conhecer. Como gente pequena que ri dos outros pra menosprezar.

Me ocorre o pai nosso, a oração que, supostamente, Cristo nos ensinou. 'Pai' nosso que estais nos céus - fazendo um adendo - dificilmente me esquecerei de ‘Mãe’ tão cedo. Não me levem a mal, sou filha dum lar cristão, mãe devota mariana (sagrado feminino), pai devoto de Camões e Padre Cícero, comunista, detestava igrejas, mas sentia que existia um criador. Sempre me lembro do meu pai falando do criador, e tinha medo no olhar dele. Dele. Ele. E eu nunca gostei do medo que sentia pelo deus cristão. Passei meus primeiros anos escolares num colégio de freira, e poucas coisas podem ser tão traumáticas quanto estudar numa escola religiosa. Passei essa fase todo odiando calada tudo o que sentia dessa religião: culpa, raiva, remorso e perda. Dai cresci e me libertei disso tudo, mas a simbologia está por toda a parte, especialmente o resíduo do Deus provedor, criador que supostamente nos ama, mesmo com todo o apocalipse de presentinho.



Mas ficou uma pergunta, ao menos pra mim, o que Aronofsky queria de nós?  Quando o longa começa, a impressão é de que jamais sairemos daquela casa, tão verdade que é mentira, tão mentira que é verdade: decerto, a casa não sairá de nós. Sabe quando se tem um pesadelo e não se consegue acordar? O terror e o desespero começam a tomar conta do corpo, não se sabe como reagir: choro, riso, se mover, correr.

Este é o angustiante cenário montado por Aronofsky em Mãe!, para nos envolver numa espécie de alegoria do velho e parte do novo testamentos, em que cada personagem sem nome próprio representa simbolicamente alguma persona bíblica. No início, um casal, formado por Jennifer Lawrence e Javier Bardem, vive isolado em uma enorme casa. Enquanto ela é responsável por restaurar toda a estrutura da incrível casa, ele passa os dias buscando inspiração para escrever mais uma história. Até que uma noite, um estranho (Ed Harris) bate à porta, se apresenta como médico e diz que confundiu a grande casa com uma pousada. Há um conforto espacial em saber que estamos no controle, o terror compreende a surpresa, mas também a domesticação dela, tentamos o tempo todo adivinhar para onde iremos, e para isso decoramos caminhos, reparamos em ruídos ou pequenos movimentos, criamos uma espécie de escudo pela adivinhação. No decorrer do expediente, vamos entendendo que o fora e o dentro serão conceitualmente embaraçados, numa avalanche de metáforas que pisarão em cima de nós, sairemos de casa, e entraremos no cinema, e muito provável, sentiremos a mais perversa agorafobia, na melhor das hipóteses, seremos testados.

Confusa e contrariada com a situação de ter um desconhecido sob o seu teto, Jennifer Lawrence mantém o tom educado ao lidar com o seu desconforto, até mesmo quando a esposa do forasteiro (Michelle Pfeiffer) surge e se impõe como dona do espaço. Paulatinamente, vamos sentindo o desconforto de Jennifer Lawrence ( e da casa) com a presença dos indesejados hóspedes. Mesmo convivendo com o crescente caos, Jennifer Lawrence tenta manter o seu lar intacto, enquanto o marido está mergulhado na vaidade e busca receber o amor de desconhecidos. A ideia de ser adorado pelo casal estrangeiro o fortalece, tal como um alimento para o corpo. A benevolência de suas ações durante o filme nos causa mais aflição, sua maior necessidade é ser amado acima de todas as coisas. Vocês já ouviram isso antes, não?



Mas reparem, Jennifer Lawrence é a mãe natureza, a casa, a base de tudo. De uma forma mais simples, a atriz representa as mulheres que são mães, que cuidam do lar e da família. Mas também ela representa a mulher sem voz, que é ignorada, sufocada e submissa às decisões dadas em sua volta; ela é a pessoa que não ganha a atenção merecida. Javier Bardem é Deus, o criador da casa e dos elementos que surgem ao longo do filme. Ele também representa o homem egoísta, que não dá o espaço merecido à sua esposa, não leva em consideração os pensamentos e desejos de sua companheira. Apenas a sua voz é a mais importante e nada mais pode ser feito, a não ser substituir a casa. O que isso tudo lembra?

Quero falar mais dessas reações, das minhas. Num determinado momento da narrativa, quando Michelle Preifer já nos arranhou sem pedir licença, quando Ed Harris já tossiu nossas interrogações, quando minha bússola de assimilação sucumbe à labirintite do mise-em-scene, passo a não sentir meus pés, meu torso, meus braços, rosto, e me vejo em lágrimas, um claro sinal de que a obra me ultrapassou, e foi mais longe do que eu, mas já estamos no meio do caminho e não queremos voltar. Um modo furtivo de nos deixar assim, meio perplexos, querendo reagir, não importa qual a reação, dessa vez com o hater também contemplado no script, tem pra todo mundo, odiar não será novidade, amar pode configurar histeria, não há consenso, não há bom senso, e que bom, não há crítica pasteurizada.

Mas afinal, o que Aronofsky queria de nós? Há um risco assumido ali, e talvez um deboche inserido na própria ideia de ruptura, nessa invasão composta pelo que queremos, pelo que queríamos. Tipo, vocês não queriam baixaria? Vocês não queriam vaiar? A megalomania que aposta não apenas na catarse, mas na anti-catarse. (Então vaiem). Tudo o que se estraga, parece propositalmente estragado, crianças desmoronando seus infalíveis castelos de carta, antes que o vento o faça. Me parece um cinema que não depende do que temos a dizer, quando piora, é para valorizar o próprio tombo, quando salta, é sem nada a perder, até por isso queimará bastante em sua fogueira de perversões. Não sei ainda se 'Mãe!' é um material rindo das nossas projeções e comoções, do nosso jeito de sentenciar a arte, da religiosidade completamente rendida ao frisson ‘fandom’ viés fanatismo. Um falem bem, falem mal, mas façam tumulto, invadam a minha casa e desobedeçam minhas regras, velem os mortos das redes sociais, tratem a minha obra como a casa de vocês, mexam na privacidade, odeiem a J- Law, citem que essa é a minha fanfic bíblica, invadam esses espaços - supostamente meus. Ainda que alguém tente explicar o que esse filme queria de nós, a resposta são todas as respostas. 

Inté.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

A Garota no Trem



Dia desses assisti A Garota no Trem, acho que estreou faz pouco tempo. Foi um acaso, desses da vida. Dificilmente eu pararia duas horas da minha vida pra assistir um filme desses, só pela propaganda, que soava bem genérica, por sinal. Muito menos pelo resumo fornecido pela canal a cabo, suspense sei lá das quantas. Mas o certo é que parei e assisti. Noite de vento frio, teto rangendo, depois de passar a tarde ouvindo Slowdive.

When the sun hits e Girl on the train tiveram alguns efeitos devastadores e catárticos em mim. Slowdive sempre é devastador. Mas então. O filme (baseado num livro que, adivinhem? Escrito por mulher. De novo.) é surpreendente e este texto conterá spoilers, portanto pare de ler por aqui.

Alguns comparam A Garota no Trem à Garota Exemplar, outro livro que virou filme, um enredo intoxicante sobre um casamento que não deu certo e sua forte crítica ao estereótipo da 'garota que parece legal'. Bem, eu achei  A Garota no Trem diferente, e doloroso, que nem uma nevralgia lá pelas gengivas, coisa de dentina exposta. A gente lida aqui com a dinâmica traiçoeira do casamento e os efeitos destrutivos da misoginia internalizada. No caso, a garota no trem é Rachel, uma mulher solitária, divorciada e alcoólatra, que anda de trem diariamente, indo e voltando para Londres, com a esperança de conseguir esconder sua demissão da colega de apartamento. 

Todos os dias, o trem passa cruelmente pela casa onde ela, uma vez, viveu com seu adorado ex-marido, Tom. Ele ainda mora lá com a atual mulher, que por sinal foi sua amante, e a filha do casal. Rachel direciona seu foco nas casas um pouco mais adiante, onde outro jovem casal mora, e inveja a aparente abençoada parceria dos dois. Certo dia, ela fica chocada com o que vê na casa desse casal, a moça com vida perfeita supostamente traindo o marido perfeito, e logo depois a esposa desaparece (na verdade ela foi assassinada). Rachel, convencida que o evento que testemunhou é relevante, se envolve nessa trama, mas o alcoolismo debilitante e os apagões de memória causados pela bebedeira não permitem que ela seja uma testemunha confiável para as autoridades e até para si mesma. No auge da insanidade, ela procura o marido da moça sumida, e conta que era amiga dela, numa tentativa, talvez, de vivenciar uma vida e um amor que ela apenas imaginou. Nada é o que aparenta.  

A narração de Rachel, muitas vezes difícil de ler, por vermos sua luta com muitas recaídas e como ela se agarra desesperadamente às memórias escondidas na névoa de muitas noites de bebedeira, se alterna com as narrativas das outras duas mulheres da história. Megan, a esposa desaparecida, conta uma história no início, uma que complica o sonho dourado de Rachel sobre sua vida com o seu marido Scott. Compulsivamente desleal, cheia de culpa e perdida, Megan parece ser o problema na família perfeita que o casal poderia ter tido. Anna, a nova esposa de Tom, é um contraste impressionante em relação às outras mulheres; vaidosa, convencida e cheia de si, ela sente falta de ser a amante sexy que era, mas sente-se satisfeita de ter triunfado sobre a rival, a ex-esposa traída e patética. Seu amor pela filha e o medo da imprevisível Rachel dá uma certa intensidade ao seu personagem superficial. No entanto, logo fica claro que os apagões de Rachel e sua memória duvidosa estão escondendo algo mais profundo do que algumas noites irresponsáveis, e começamos a imaginar quem, entre os personagens envolvidos, está a salvo dos segredos escondidos nas brumas da memória de Rachel. 

No final das contas, o adorado ex-marido de Rachel nada tem de adorável. Tudo se revela quando ela encontra com a ex-chefe dele, que lhe revela várias verdades sobre o caráter de Tom, um mulherengo, mal caráter, sórdido e mentiroso. Rachel começa a lembrar de fatos do seu casamento, de agressões, de humilhações e se lembra do momento do túnel, em que viu Tom com a moça desaparecida. Eles eram amantes e foi ele quem a matou, após descobrir que ela estava grávida dele. A cena final pode parecer absurda, mas é uma espécie de recompensa epifânica, com a morte do patife pelas mãos da ex e da atual esposa, quase como num pacto de sororidade.  

Nos meus devaneios, entendi A Garota no Trem como uma gigantesca metáfora, quase alegórica, da vingança feminina, misândrica, sobre todos os canalhas que mentem e nos enganam. Matar é crime, mas a literatura está aí pra isso. O cinema também.

Bisous.

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Meu amor sangrento


Escrito em algum momento de 2006, Fortaleza. Lembrei dessa 'croniquinha' após saber que My Bloody Valentine lançará disco novo.



Meados de 2006. De novo aquele sonho ruim, aquele em que reprovei a maldita disciplina de sintaxe do português I (sim, tem sintaxe do português II) e não posso me formar. Me formar, aliás, parece cada vez um sonho distante. Ou um outro pesadelo. Escrevendo isso, me ocorre de soslaio que, olha só, eu deveria me sentir mal, enquanto acadêmica de letras, em usar próclises em vez de ênclises, mas estou pouco me lixando. Na verdade, acho ênclise um negócio tão cafona, mais do que hard rock e sapato branco. Pior do que isso só mesóclise, que me lembra alguém que toma chá (ou café) e que levanta o dedo mendinho. 

E eis que depois deste pesadelo, uma e pouco da manhã, não consigo mais dormir. Aliás, acho que desde 1995 que não consigo dormir direito. Há quem diga que é coisa de mãe, não dormir direito. Eu digo que é coisa de mãe sobrecarregada. Ou ser mãe que é sobrecarga, sei lá. Mas o certo é que no meio de mais uma noite insone, decido finalmente ouvir My Bloody Valentine. Eu já tinha ouvido antes, Sometimes no Lost in Translation da Sofia Coppola, e o filme e a música causaram em mim uma série de efeitos, que desencadearam sentimentos dos mais diversos, que eu poderia resumir como desconcertantes. Aquela cena de Lost in Translation, na ponte em Tokyo, e aquele paredão de guitarras shoegaze de Sometimes... Close my eyes Feel me now, I don't know how you could not love me now... Sempre que me perder de vista, pode me procurar nessa cena, morando dentro dessa música.

Vamos à audição, um download xexelento que fiz na 'procura das almas' (entendedores entenderão). Há de se entender que sou um espírito velho, acostumado a comprar vinis no centro da cidade e que mal se acostumou com CDs. O álbum é Loveless. Olha o nome da cousa: Loveless. Sem amor. Acho que eu deveria assinar doravante M.E. Loveless. Três anos de gravação que deram em quarenta minutos de músicas. Músicas. Foram alguns dos quarenta minutos mais intensos que já vivenciei. Quase a experiência dum parto. Acho até que acabei de parir alguma coisa sombria e linda, que escorreu pra debaixo da minha estante de livros. Corro pra cozinha. Todos dormem. Liam passa por mim (não o Gallagher, ai de mim, meu gato angorá). Abro a geladeira e me jogo no chão. O brilho branco da geladeira azul, sua atmosfera ártica anima as células do meu rosto. Eu acho que estou chorando. Pego uma garrafa de vinho que estava ali pela metade, vinho desses de dez reais, e volto pro quarto. Ainda ali no computador, o player de Loveless pronto pra ser reiniciado. Meu quarto cheira a incenso de canela que briga com o resíduo do meu cigarro de cereja. E agora o vinho baratinho.

Loveless é uma violência, é uma dor, é um parto natural, sem remédios, sem conforto, mas que termina numa explosão de alívio, lágrimas, amor em sangue e outros líquidos vitais, evaporando, evolando. Amor sangrento. Loveless passou a ser fundamental pra mim. A partir de agora é fundamental. Uma carga de ruídos orquestrais, em que aquelas três guitarras, que parecem se movimentar e pensar de forma independente pelo disco, ditam os rumos da minha vida. O contraste entre as vozes brandas e a tapeçaria quase intransponível de sons que ocupam o álbum traz à tona alguma lembrança residual do abismo. Amar e não amar são abismos, um do lado do outro, como canyons. Morada de sei lá o quê, que dói sei lá porquê. Acho que acabei de condenar a minha pobre alma a viver assim, Loveless.

Imagem: Estou com uma ideia pra ilustrar essa crônica/página de diário/algo que o valha, seria uma referência ao Shoegaze (olhando pros sapatos). Gosto de tirar fotos da perspectiva de quem olha pros pès ou pros sapatos. É minha alma de shoegazing. Então, fica essa por enquanto.


Emmy 2017 e a força da representatividade feminina



Hoje, dei aula de revisão de conteúdos, provas semanais chegando, depois de uma semana intensa de feira cultural na escola (trabalhos lindos, turmas me matando de orgulho, como 1ª 1 e 2ª do meu coração) e, no meio das minhas considerações pras avaliações de literatura, notei que fiz um adendo à informação de que Clarice (Lispector) não gostava de ser rotulada como escritora feminista, e ela não gostava mesmo, mas, independente do que Clarice queria ou não queria, a obra é aberta a múltiplas interpretações dos leitores, e nós leitoras percebemos esta voz feminina, esta representatividade e protagonismo das personagens criadas por Clarice.



E ontem, assistindo o Emmy 2017, quando vi Margaret Atwood subir ao palco junto com o elenco de Handmaids' Tale (O Conto da Aia, em português) só lembrei de suas declarações sobre este livro, de que não era um livro feminista, porque não teve a intenção de ser feminista, porque foi escrito antes da grande onda feminista  etc. Mas, corroborando da mesma perspectiva das leitoras, nós sentimos tudo isso em The Handmaid's Tale, é impossível não sentir. A série The Handmaid's Tale levou seis prêmios no International Emmy Awards, que aconteceu ontem. Entre eles, o de melhor atriz em série dramática para Elisabeth Moss. A série, adaptada do livro de Atwood, fala sobre aquilo que toda mulher tem medo: a perda de sua voz e autonomia sobre sua vida e seu corpo. A atriz se destacou no papel da aia Offred, uma mulher forte, destemida e brutalmente atingida pela estrutura machista.

Outro grande vencedor da noite foi Big Little Lies, Nicole Kidman em sua fala pra agradecer a premiação, falou de violência doméstica e como nos calamos perante este absurdo, e eu não consegui não me colocar no lugar da personagem, já que passei por isso (e demorou um tempo até eu conseguir admitir pra mim mesma que vivi isso, que romantizei e normatizei relação abusiva). Mas foi a fala de Reese Whitherspoon que mexeu comigo: "Deixem as mulheres serem protagonistas de suas próprias histórias, serem as heroínas de suas histórias". E de novo, foi impossível pra mim não me colocar diretamente neste lugar e me sentir representada na fala da atriz, com a série e com o livro, que devorei em algumas horas numa noite em que esbarrei no primeiro episódio na HBO.



Então, deixo aqui minha alegria, duma noite linda e importantíssima pra nossa luta e, fica a recomendação de que assistam The Handmaid's Tale e Big Little Lies, assim como leiam os livros, escritos por duas mulheres incríveis.

Bisous.

Imagens: The Handmaid's Tale (aquela fotografia e direção de arte que você respeita); Clarice fazendo 'a natural' datilografando; Cena final de Big Little Lies.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Poder e Igualdade



Há quem diga que feministas são mulheres mal amadas, infelizes e insatisfeitas com a vida. Bem, falando por mim, mal amada eu não sou não, sou muito amada e amada de verdade, sem interesses ou pequenezas. Quanto ou infeliz e insatisfeita, olha sou sim, sabe? Sou infeliz de viver numa sociedade opressora que a toda hora me diz que sou inadequada. E estou insatisfeita com tudo isso.  

Lembro quando o feminismo começou a fazer sentido pra mim, mas continuei me sentindo infeliz e insatisfeita, contudo, menos só. Daí, deparei-me com um termo novo, desconhecido: sororidade. Lendo, discutindo, refletindo, desconstruindo, chegamos na beleza (ao menos teórica) da sororidade, que almeja quebrar um dos braços mais fortes do patriarcado: a rivalidade entre mulheres. Um dos mais fortes, porque é praticamente um escudo contra o verdadeiro opressor, que nos faz lutar uma contra as outras enquanto o que tem que ser destruído, esse sistema que estupra mulheres a cada 12 segundos, continua firme e forte. 

Tentamos desconstruir tudo quanto é problemática e opressão, desde as mais intrínsecas: racismo, classismo, gordofobia, etc, etc, etc. A gente fala de empoderamento, a gente procura o empoderamento, a gente se liberta, acima as rédeas da própria vida e, quando finalmente está tudo claro e pronto, e se pode daí resgatar outras mulheres, a gente se acomoda. Sororidade pra quê, pra quem? 

O conceito de sororidade, ao menos pra mim, o que eu consegui entender, é da união de mulheres contra o patriarcado, tática de luta contra a rivalidade feminina, que mantém a unidade de movimento, mas não iguala opressão e sofrimento. Partindo do principio de interseccionalidade, em que opressões se somam, nem todas as mulheres sofrem apenas por opressão de gênero. Por isso, mesmo que oprimidas, mulheres oprimem outras mulheres. E aí é que entra a linda da sororidade novamente, porém não mais na pureza de seu conceito e sim como a arma silenciadora mais dolorosa de todos os tempos, que promove destruição do movimento de dentro pra fora. Porque em espaços que temos que ser contempladas por completo, nos é cobrado sentimento de irmandade com opressor, e que esteja bem entendido que o opressor a que me direciono é mulher branca, cis, hétero, de classe média/rica. Não se pode cobrar/obrigar irmandade de uma mulher negra e periférica, por uma branca rica, e nem de uma trans com uma cis, porque não se exige irmandade de oprimido com opressor. E sou muito firme em afirmar que até falta de sororidade é uma reação de oprimido, ou seja, é totalmente legítimo. 

 Volto a afirmar meu posicionamento de que sororidade é para unidade de movimento e tática de luta contra rivalidade entre mulheres ao falarmos de opressão de gênero, mas todo o resto é balela. 

Viva ao feminismo abolicionista!

Inté. 

Imgem: Maravilhosa Angela Davis.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

O curioso caso de Annabelle que parece minha tia



Já escrevi muita resenha de filme, especialmente, filme de terror, confiram aí na tag Boo do bloguito. É uma das coisas que mais gosto de fazer em termos de blog e, pelas estatísticas, é das coisas que vocês, leitores fofinhos, mais gostam de ler por aqui. Obrigadinha. E eu levo a sério, leio outras resenhas pra ver se minhas ideias desabrocham, mexo nos meus alfarrábios sobre psicologia, filosofia pra deixar a cousa mais interdiscurssiva, quase como se estivesse elaborando minhas aulas. Mas  eu enjoei disso ó.

Nesse momento inclusive, eu deveria estar corrigindo redações, mas fui assistir Anabelle 2: criação do mal, apesar de ter odiado com força Anabelle 1. Mas eis que escrevo esta resenha, sem pretensão, é mais pra tirar uma onda sinistra dum filme muito ruim, inspirada pela visita que a boneca do capeta fez por aqui, passeio este, aliás, que a coisa mais legal de todos os tempos. Tá, a mais legal não, uma das mais legais. Mas para por aí.

O filme é um cocô. Sério, um cocozinho, pior do que o 1. É ruim de uma maneira sem vergonha, e houve momentos que pensei que eu fosse morrer de desespero, não de medo, mas de raiva de como se faz um filme ruim desses. Então, já dei o spoiler de que é ruim, você continua lendo por sua conta e risco.

Posso dizer que sou uma espécie de especialista em filme de terror ruim, acho até que eu deveria fazer uma pós-graduação sobre. Poderia apenas ser um mais um filme besta, pra gente assistir daqui uns anos numa noite qualquer, passando no SciFy e afins, mas não, além de não se sustentar em pé para além dos easter-eggs do pretenso universo waniano (Invocação do mal 1 e 2, Anabelle 1 e 2) é mal feito, é ridículo, é pretensiosinho. E tem gente gostando, vai entender.

Confesso que tenho implicância com a Annabelle, porque ela se parece muito com a minha tia Artemísia na aparência e na capetice. Minha tia é tão célebre em suas ruindades que é conhecida por um certo apelido na Barra do Ceará (não vou dizer, não adianta), por coisas como ter cegado o falecido marido (outra praga ruim, do tipo bíblica), e por já ter feito gente cometer suicídio. Eu estou falando sério.

Então, a tia Artemísia, quer dizer, a Annabelle 2, traz um monte de coisas que  a gente já viu em outros filmes bem melhores. Mas vamos lá, somos apresentados ao criador da boneca, que perdeu a filha de forma trágica alguns anos antes. Depois da tragédia, ele resolve transformar sua casa em uma espécie de abrigo para crianças órfãs, como forma de suprir essa ausência. Com isso, surgem algumas crianças e uma freira – aquela lá do Invocação do Mal 2 (desse eu gostei) – que passam a notar que 'algo errado não está certo', algo estranho acontece no quarto intocado da menina falecida. E é a partir disso que se forma o "terror", com as hóspedes tendo que se virar para se livrar do capeta em foram de boneca ou boneca em forma de capeta, sei lá. Clichê, né? Pois é, clichê.

O filme basicamente é um apanhado de esquemas batidos, como a jogo com a trilha sonora: cria uma tensão crescente, e no segundo anterior ao susto, a música para, quando isso acontece, todo mundo já está sabendo o que está por vir, o que deixa a cena anêmica e boring, lá pra terceira vez que isso aconteceu, eu já sentia saudade de assistir Tomates Assassinos. 

Annabelle 2 é basicamente isso, um monte de clichê, pretensiosamente reinventando os filmes de terror (tá não, queridinho), que todo mundo que assiste e concatena as ideias minimamente, já sabe o que vai acontecer: a boneca do cão tocando o terror.  Minha tia Artemísia daria um filme melhor.

Inté. 

Feminismo é independência



Eu sou uma velha, não por causa dos meus 40 anos, vividos intensamente (ô), mas por causa da minha alma, porque eu sou um espírito velho. Eu me identifico como feminista desde muito cedo, com diferentes intensidades. Houve época que fui mais engajada, militante quase, depois essa militância se calou perante uma relação tóxica e abusiva que só me fez mal, depois voltou com força, quando voltei a viver (de maneira dolorosa, mas voltei). 

E, nesse tempo, veloz e efêmero da sociedade líquida, às vezes não consigo me inteirar de tudo, inclusive da pauta feminista que, por vezes, parece viver mais de lacração do que de realizações. Vejo várias garotas e mulheres incríveis, perdendo um tempo precioso pra falar do empoderamento do cabelo, dos pêlos, do batom, do shortinho, da menstruação, etc, etc, etc, quando deveríamos estar, ainda, batendo na tecla da independência intelectual e financeira. 

Mulheres, minhas queridas, sem independência não chegaremos a lugar nenhum, muito menos um lugar de voz autorizada. Nenhuma pauta será compreendida, quiçá atendida. A gente tem que estudar, trabalhar muito, muito mais do que os outros e, por vezes, das outras que ocupam lugares de privilégio (brancas, cis, héteras, classe média com babás negras, por exemplo). 

Quando todas nós entendermos que, sem independência, autonomia, não conseguiremos nada, quando a maioria de nós compreender profundamente que precisamos vencer as engrenagens opressoras por dentro, usando o capitalismo ao nosso favor, e dando a volta no patriarcado, aí sim, nossa vitória individual, multiplicada em coletividade, será plena. 

Inté.

Imagem: Beyoncé como Rosie the Riveter: garota dum poster do tempo da Segunda Guerra que virou um símbolo feminista pin-up.

terça-feira, 5 de setembro de 2017

Texto curto. E grosso.



Recentemente, eu me toquei que não gosto de nenhum deles. 

Houve tempo que eu até gostava, de uns mais, de outros menos. Hoje eu tenho abuso até de lembrar que um dia dividimos o mesmo espaço ou quase isso. Gente que não me acrescentou nada, na verdade, só me atrasou, me humilhou, me excluiu e me descartou, como se eu nada significasse. Alguns, ainda se mantinham por perto por sei lá, dor na consciência, alguma esfera disso, algo que o valha. Graças às forças das trevas, foram todos pra baixa da égua, e espero que por lá fiquem. Filhos, netos, descendentes, todos terão o meu mais profundo desprezo.

Hécate nunca lhes falte.

Olivettis nem têm backspace



Quando eu tinha uns 12 anos, fiz um curso de datilografia na igreja do bairro, óbvio, de subúrbio. Aprendi a datilografar numa Olivetti azul, que era meu amor. Sim, eu era uma criança meio estranha, que tinha casos de amor por máquinas de escrever. E por lápis, lipiseira, canetas, cadernos, papéis, hoje o Word, Blogger, tenho essa afecção própria de quem gosta de escrever. E eu gosto de escrever.

Demorou um pouco pra que eu tivesse uma só pra mim, era caro e eu neo-pobre. Inclusive, tenho uma história péssima sobre, um infeliz, parente da minha mãe, que trabalhava com material de escritório, sei lá o quê, que passou anos me prometendo uma máquina de escrever, e é claro que nunca me deu. Nunca entendi pra que diabos ele mentia. Morreu recentemente o cretino, talvez soterrado pelas máquinas de escrever que ele nunca me deu.

Bateu a vontade de escrever sobre, porque fui hoje ao Centro pra tentar comprar fita pra minha máquina (o nome da máquina é Bambinha; a estorinha por trás do nome é ótima, depois eu conto) e não encontrei nas lojas onde sempre comprava, nas proximidades da Praça dos Correios. Daí, fui procurar online, e encontrei no Ponto Frio. Oi? Pois é, tem lá. E vocês sabem, né, uma coisa leva a outra, e acabei procurando por máquinas de escrever no Mercado Livre, porque ainda sonho com uma Olivetti pra chamar de minha (a Bambinha é uma Remington).

Além do ML, ainda dei uma olhada no Enjoei, encontrei gente vendendo Olivetti e Remington revisadas por mil reais, e eu achei meio absurdo.

Com o advento dos computadores, as máquinas de escrever quase desapareceram e passarem a ser objeto decorativo. Até lembrei que tem (tinha) um sebo no Rio, na rua do Real Gabinete de leitura, que decorava a vitrina com várias máquinas de escrever. Salvo engano, todas Royal.  É verdade que as máquinas de escrever têm um look retro e há antiquários que as querem vender como jóias de um tempo que jamais voltará. No entanto, os preços que alguns vendedores pedem pelas máquinas de escrever são um disparate, como mil reis por Olivettis e Remingtons. Quando me perguntam quanto vale uma máquina de escrever antiga, digo que vale menos do que pagaram por ela. Não compreendo essa obsessão de fazer das coisas mecânicas uma preciosidade. Em termos práticos: Nenhuma máquina de escrever manual posterior a 1960 vale mais de 300 reais e isto se encontrar em muito bom estado de funcionamento, revisada, lubrificada e com fitinha nova. Mil reis é um absurdo. Quem quer que esteja a pedir mais do que 300, está apenas tentando pegar um besta que queira se passar de cool. As máquinas são mecânicas e como tal, sujeitas a desgaste. Novas, poderiam escrever facilmente milhões de palavras. Usadas? Nunca se saberá quanto tempo sobrevirão, e as peças e reparos são difíceis de arranjar. Por exemplo, em Fortaleza não faço ideia donde levar minha Bambinha pra revisar, apesar de que ainda está bem, funcionando e tudo.

Doença crônica do Brasil é gostar de enganar e tirar proveito. Eu que não caio, por mais que deseje com força Uma Olivetti, ou ainda, Uma Baby Hermes. Mas a Remington ainda me deixa feliz,  com todo o seu barulho, click clack que não perdoa. Não há undo ou backspace. Nos computadores é muito fácil escrever o draft e em simultâneo começar a editar, a corrigir. Numa máquina de escrever, todo o erro é eterno, permanente, pelo que quando se escreve um primeiro draft, sabe-se que será definitivo e obriga o autor a escrever novamente tudo (e aí sim a editar) quando passa para o computador. O primeiro draft na máquina de escrever não deixa voltar atrás e a perdermo-nos com o detalhe. Obriga a andar para a frente, a colocar no papel em grandes traços toda uma ideia. O detalhe virá depois. Para quem escreve muito, e para quem escreve com ideia de fazer revisão do que escreve no computador, a máquina de escrever é um instrumento precioso. Mas também o são a caneta e o bom papel. 

As máquinas de escrever valem mais pelo valor de um sonho.

Inté.

Imagem: Do tempo que Dona Lilibete escrevia mais do que hoje em dia.

domingo, 3 de setembro de 2017

Detergente neutro



Lá em casa tinha um sofá amarelo pastel, mas pastel de envelhecido. Era velho o sofá. Deram de presente, mas aquele tipo de presente desapego-quero-me-livrar-dessa-tranqueira, sabe como? Pois então. E a gente aceita porque é pobre sinistro e não tem onde cair morto, antes que se caia num sofá amarelo pastel de tanto uso.

Lembro que a persona que mo deu, fez uma espécie de tutorial pra mode me ensinar a limpá-lo: tire todo pó, daí encha um balde d'água e detergente neutro, com um pano umedecido, limpe todo o sofá, repita essa etapa ao menos duas vezes, três é o ideal, então deixe secar; mas lembre-se, tem que tirar todo o pó, esperar, e tem que fazer isso uma vez por semana. E eu, oi, tá boa?

Nunca fiz. Mas fiquei com o sofá.

Hoje, me diverte essa memória e a certeza de que a pessoinha ficava chateada de saber que, além de não ter dado a mínima pro tutorial de como manter sem graça, porém limpinho, o sofá amarelo, meu gato, também amarelo, dormia no sofá, afiava as unhas no sofá e às vezes, fazia xixi no sofá. 

Sim, sou cretina.

Imgem: T2i, e outro sofá, este com a capa amarela, outro causo.

O Feminismo e a Liberdade na era de *temer



*troque o t minúsculo pelo maiúsculo...

Esta semana, mais uma semana, de muita correria, stress, nada de novo sob o sol, um pra cada vivência aqui em Fortaleza e há quem chame de cidade solar por causa disso. Acho brega no último. Mas então, foi uma semana meio difícil pra mim. Tudo bem, sempre é meio difícil pr'uma mulher dona das ventas, feminista e socialista num ambiente cujas as cores são outras. Mas esta última semana, ah esta última, foi de lascar. 

Primeiro, filhas doentes. Uma do rim, outra da vesícula. Às vezes perco o sono pedindo pra ser comigo e não com elas. Por menos grave que seja, mãe nenhuma merece ver os filhos sofrerem. E os meus já sofreram tanto desde que voltamos do Rio. Há de melhorar.

Segundo, observar pessoas que se relacionam entre si por causa de iPhones 7. Sério, existem pessoas que têm iPhone 7 que só fazem amizade com outros donos de iPhone 7. Steve Jobs rindo, diabolicamente, no oitavo círculo dantesco. Algum estoico pode me aconselhar pra mode evitar esse tipo de gentinha. Pois é, amiguinho, não posso não ó, desolée pour moi (problema meu, né?). 

Em seguida, discutir com gente que acredita que magro é oprimido por ser magro, assim como branco, homem, hétero. Gente. Queria morrer, sério. No mesmo dia, numa lotérica pagando boleto (é só o que eu faço nesta vida severina) um homem horroroso me empurrou e falou bem alto, pra todo mundo ouvir, que era por isso que mulheres apanhavam, porque estavam sempre no caminho. Ainda falou que Maria da Penha não servia de nada porque as juízas apanhavam dos maridos em casa também. E foi nesses últimos dias que a Clara Averbuck foi molestada num Uber, que um maníaco ejaculou numa moça dentro dum transporte público e foi liberado pelo juiz que não entendeu como injúria grave o ocorrido, e o pior de tudo, cara solto fez de novo, está preso agora, até o juiz, seu fã número um, o liberar de novo. Uns meses atrás, minha filha e eu fomos agredidas na rua por um monstrinho, que passou por nós dizendo que iria estuprar todas as feministas nojentas, e esbarrou na minha filha com força. Acho que esse monstro supôs que éramos namoradas, estávamos de braços dados, sei lá. Quem entende o que se passa na cabeça dessa gente? Eu não entendo e nem quero.

Daí disso tudo, emergiram as lembranças de outras agressões. Sim, mulheres instruídas e esclarecidas estão sujeitas à agressão, às vezes por desconhecidos (já aconteceu comigo, tentando defender amiga), outras vezes, a maioria, por quem deveria nos amar, e isso foi cafona. Acreditar em amor romântico é uma cafoneira horrorosa. E eis que chega-se à conclusão de que já fui agredida de tudo que foi jeito, dentro e fora de relações tóxicas e abusivas.

E, mesmo sendo feminista, tenho consciência de que o feminismo nunca me protegeu ou livrou de nada disso. O feminismo não evita que vivamos relações erradas ou que sejamos agredidas na rua, andando de braços dados com nossas filhas e filhos. O feminismo não nos cria um escudo, nem uma redoma de vidro, não nos impede de tomar decisões perigosas, como entrar num Uber sozinhas e vulneráveis, num mundo feito pra machos ruins. Mas o que o feminismo faz por todas nós é nos acordar, é nos dar consciência que a culpa nunca é nossa do mundo ser esse patriarcado lixo que nos oprime. Ou seja, o feminismo nos liberta da escravidão de achar que a culpa é nossa, naquela concepção medieval de que ser mulher é errado. Medieval nada, milenar, bíblica, judaico-cristã.

Viva ao Feminismo Abolicionista.

Inté.

Imagem: feita por mim com uma Sony Cybershot.
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